segunda-feira, março 19, 2007

Das pequenas coisas fortuitas…


...Meses depois encontraram-se. Ele não lhe disse das vezes que lhe apeteceu ligar-lhe.
Foi um encontro fortuito, nada diferente dos poucos encontros anteriores, sempre de fugida, o tempo contra eles, as horas que passam demasiado depressa, a pressa de sair dali, o sitio fechado, não se vê o mar e ele sente-se deslocado no tempo e no sitio, só ela o acalma, mas estão distantes de novo, demasiado distantes. Ele não lhe disse que estava maravilhosamente bonita, que num repente lhe sentiu as mãos frias, que gostaria de lhe ter dado as mãos, mas nunca se tocam as mãos.
Que se passou neste tempo de ausências? Que se vai passar a seguir. Só o tempo o dirá. O tempo esse paliativo que cura. Que avança sem nós, inexoravelmente preciso. Só nós nos deixamos ficar, nos perdemos, nos desencontramos. O tempo não, encontra-se de hora a hora nos minutos e nas horas, todas, a somar às horas da ausência que se sente nos dois. Tudo mudou. Eu estou ali sentado na árvore, junto ao pequeno canteiro de relva, onde as rolas pousam a procurar sementes para saciarem a fome ou a vontade da repetição dos gestos ensinados pela sobrevivência da espécie. Eu estou ali, como fantasma que observo no tempo as distâncias que não se vêem mas se sentem por dentro. Não lhes posso dizer, não lhes posso falar. Só observo, é essa a minha função. Observar pessoas. Eu sou o poeta, portanto não existo, sou uma criação literária. Neste momento, nesta criação habito na árvore. Sempre gostei de árvores, nem sei como se chama esta, mas é um pequeno detalhe, já me habituei a ela. Não sei do tempo que aqui fiquei esperando.
Não lhe disse ele que esta pode ser a despedida. A partida, finalmente cumprido que foi o desejo de a olhar uma última vez. A entrega do livro esquecido faz tempo. Faltou na verdade que eu vi o darem as mãos. As mãos nunca se tocam. Só o olhar acaricia os sentidos. O olhar que diz tanto.

...Nunca lhe diz nada, quase nada, limita-se a estar ali, deslocado no tempo e no espaço, e depois parte de novo. Parte cada vez mais. As idas são sempre ausências prolongadas. Eu fico ali, espero que voltem. Desespero para falar verdade. Mas não existo. Não tenho pensar, não tenho sentir. Não tenho opinião. Estou ali para observar pessoas. Observo pessoas. Tenho a pequena particularidade de poder observar por dentro das pessoas, corro-lhes os circuitos. Quer dizer, diluo-me no sangue, vou a todos os sítios dos corpos. Conheço todos os segredos. Sou um guardião de segredos e de sentires, mas eu não sinto nada, não existo, sou criação literária. Às vezes querem que eu exista. Sobrevivo durante uns tempos, como as modas. Depois sou arrumado de novo esquecido. Eu sou todas as palavras…

As palavras...

João marinheiro 2007

Foto Barcoantigo

5 comentários:

Eme disse...

Por vezes, mesmo que fortuito,um encontro pode ser o suficiente para acalmar aquela tempestade interior, aquele anseio.. ou pode ter o efeito contrário e tornar a ansiedade ainda maior,sobretudo por não ter havido o toque,o toque suave das mãos. Nem tinha mal nenhum,mesmo sendo mãos frias, o calor do meio compensaria tudo. Nunca te questionas se podia ter sido de outro modo?

Maria disse...

Angústia - foi esta a Palavra que me ocorreu, depois de te ler.

Boa noite

Anónimo disse...

apaixonei-me pelas palavras

Essa voz..esse tom..
esse timbre,
esse som
tão leve, tão doce
tão bom;
transporte aéreo
ora voraz, cómico ou sério.
embreaguez sinusoidal
num embalar tão sonolento
como uma aurora boreal
ora sagaz ou pachorrento
e adormeço em palavras..

joão marinheiro disse...

Nena minha amiga, quando te apanhar a jeito levas um abraço, mas levas mesmo! Palavra de marinheiro.

Anónimo disse...

Apenas Palavras...

joão marinheiro

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