sábado, março 24, 2007


…Permanecemos aqui neste quarto onde a escuridão é eterna claridade. Fora deste lugar nunca viste o mar.

Mas tudo isto se passou noutro tempo, noutro lugar, e a tua boca deixava na minha um travo de asas salgadas…

…Cansei-me de te sonhar. Cansei-me do sangue e da chuva, da memória dessas rotas difíceis.

Donde te escrevo apenas uma parte de mim não partiu.

Encosto a alma à quilha do navio. Deixo-me ir no vaivém das marés. Da fala. A noite singra a pele. E tu escondias a cara num pano branco e quando fitavas as mãos eu sentia medo de um deus.
Nenhum de nós sabia se o sonho, ou a morte, nos conduziria a algum porto de felicidade.

Não me lembro o que aconteceu a seguir.
A noite deixava-se habitar por um silêncio escorregadio.
Veio-me então ao pensamento o grande porto do sul onde aportaras e dizias ter sido feliz.

Quando te digo que vou de novo partir, perguntas-me: morre-se porquê?

Caminhamos em direcções opostas, caminhamos sem destino pela cidade.
Caminhamos neste espaço de penumbras e de incertezas – onde a fala já não cintila e as palavras são de cinza.

E no meio deste silencio uma ideia de voz, uma treva agarrada à memória.

Foi então que dei por mim a existir para lá da tua morte, como se asfixiasse, mas o passado não é senão um sonho, uma brincadeira com clepsidras avariadas e algum sangue.

Não valer a pena estar triste
Todas as histórias, todas as mortes acabam por se apagar.

Um barco tremeluz nas cortinas do quarto.
O horizonte é negro. A luz do dia extinguiu-se subitamente.
As mãos com que te toco, luminoso afogado, não são verdadeiras nem reais – porque o tempo todo talvez esteja onde existimos. Embora saibamos que nesse lugar nunca houve tempo nenhum…

Al Berto, O último Coração do Sonho
Desenho Google

2 comentários:

Maria disse...

Al Berto, um porte Grande, que partiu antes de tempo...
... do meu tempo...

Anónimo disse...

além de o adorar também, o desenho é deliciosamente bem explicito; gostava de o ter aqui na minha parede.

joão marinheiro

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